Filipe De Castro
O silêncio que me corta a pele

Não é nada anormal para uma garota ter problemas com seu corpo. Nessa história tenho treze anos. Vomito tudo o que como, e quando como a mais minha punição é um corte pequeno no braço. Quando meus pais descobriram sobre os cortes nada mudou, só aprendi a esconder melhor. Não é pela atenção, é pela dor.
Aos 15 um corte na coxa quase saiu do controle. A cicatriz que ficou hoje é gros-sa e feia.
Não me cortei por um tempo, mas aos 16 passava o dia ingerindo no máximo 400 calorias. Estava linda nas fotos de formatura- não que eu me lembre, mas acredito que sim. Passei aquele ano contando calorias e me pesando na balança: não lembro do divórcio dos meus pais, as aulas, momentos com os amigos ou com família.
Aos 17 ganhei um diagnóstico: Transtorno de personalidade Borderline. O distúr-bio alimentar ficou mais moderado, mas os machucados voltaram. Não me cortava mais. Acertava o joelho na parede com muita força ou pegava objetos e pintava as pernas de roxo.
Aos 18 não passei em uma matéria da faculdade. Esquentei uma colher no fogão e me bati bem forte na coxa. A queimadura ficou lá por 5 meses e após isso não me cortei por um tempo. O vício mudou para álcool e a busca do amor em homens mais velhos. Sempre me punindo e tentando me machucar mais do que ser ma-chucada. E nunca o suficiente pra alguém.
Agora, aos 26 anos, pouco mudou. Perdi as contas de quantas vezes joguei fora as lâminas. Eventualmente eu começo de novo. Vomito de novo. Finjo uma dieta para ninguém perceber que não como direito há dias. Uso mangas longas no ve-rão.
Ainda assim, estou viva.
Viva, porém com a frase “ninguém pode te amar se você não for atraente” como lema de vida. Com todo relacionamento que tive um pensamento nunca me abandonou “Talvez ele me amasse se eu fosse mais magra. Talvez ninguém me deixasse se eu fosse magra. Talvez eu merecesse ser amada se eu fosse mais magra.”
Julia Kristeva desenvolveu o conceito de “abjeção” em sua obra Powers of Horror apoiada em autores como Sigmund Freud, Mary Douglas e George Batailles. A abjeção seria antes de tudo um sentimento de náusea, de repulsa e de desgosto causado pelo enfrentamento do indivíduo com aquilo que vive na fronteira entre o “eu" e o “outro”. O abjeto é rejeitado, excretado, cuspido para fora, mas permanece como uma ameaça inconsciente e consciente para o próprio “eu”, que se conven-ce agora como algo “limpo” e “adequado”.
Larissa Pham, escritora americana, faz uma referência a Kristeva no texto “abjeto de permanência”. Permanência de objeto é algo que bebês não tem, é entender que mesmo quando algo não está no seu campo de visão continua existindo.
Às vezes quero que doa, quero as marcas no meu corpo. Quero lembrar que ain-da estou aqui. Que os sentimentos existiram e que ainda estou viva mesmo não querendo. Abjeto de permanência.
Queria poder trazer dados, mas a verdade é que diferente do que acham, não sa-ímos por aí anunciando que nos cortamos ou que não comemos. Quem me dera que meu problema fosse receber atenção. Pessoas como eu existem e provavel-mente você não vai saber. Podem morar na sua casa, estudar com você, trabalhar com você. Infelizmente você só vai saber se perdermos o controle e passarmos do limite.
Tem muitas pessoas que tem uma pele como a minha ou uma necessidade de controle alimentar como eu. Somos pessoas com histórias silenciosas que mere-cem ser ouvidas também.
Estamos aqui. E apesar de tudo estamos vivos.
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